sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Universidade e a ordem atual das coisas

Avulta, nesse ponto, o papel da Universidade nessa busca do conhecimento. Mas, essa tarefa vem sendo exatamente ameaçada pelo prestígio crescente do cientismo e pela importância que este vem ganhando entre os que atualmente dirigem o ensino superior.
Num mundo em que o papel das tecno-ciências se torna avassalador, um duplo movimento tende a se instalar. De um lado, as disciplinas incumbidas de encontrar soluções técnicas, as reclamadas soluções práticas, recebem prestígios de empresários, políticos e administradores e desse modo obtém recursos abundantes para exercer seu trabalho. Basta uma rápida visita às diferentes Faculdades e Institutos, para constatar a disparidade dos meios (instalações, material, recursos humanos) segundo a natureza mais ou menos mercantil e pragmática do labor desenvolvido. De outro lado, o prestígio gerado pelo processo de racionalização perversa da Universidade é o melhor passaporte para os postos de comando.
Desse modo, um grave obstáculo a que se instale um processo de reflexão conseqüente é o contraste crescente, na Universidade, entre os seus grandes momentos e esse cotidiano tornado miserável pela ameaça já em marcha de uma gestão técnica e racionalizadora, que leva ao assassinato da criatividade e da originalidade.
Em nome do cientismo, comportamentos pragmáticos e raciocínios técnicos, que atropelam os esforços de entendimento abrangentes da realidade, são impostos e premiados. Numa universidade de "resultados", é assim escarmentada a vontade de ser um intelectual genuíno, empurrando-se mesmo os melhores espíritos para a pesquisa espasmódica, estatisticamente rentável. Essa tendência induzida tem efeitos caricatos, como a produção burocrática dessa ridícula espécie dos "pesquiseiros", fortes pelas verbas que manipulam, prestigiosos pelas relações que entretêm com o uso das verbas, e que ocupam assim a frente da cena, enquanto o saber verdadeiro praticamente não encontra canais de expressão.
Como uma racionalidade burocrática perversa ameaça invadir até mesmo aqueles recantos que não sabem viver sem espontaneidade, corremos o risco de assistir ao triunfo de uma ação sem pensamento sobre um pensamento desarmado.
Nessas condições, devemos reconhecer, toda reação é difícil e a muitos pode parecer como um verdadeiro suicídio, já que a carreira universitária não mais precisará ser uma carreira acadêmica. O grande risco é que a recusa à coragem e à falta de crença se convertam em rotina. Como nos libertar, então, da internalização da violência do que fala Horkheimer (1974), ou da "sujeição das almas", apontada por Lenoble (1990) ao se referir à maneira atual de representar a Natureza? Lembremos Heisenberg (1969) ao dizer que "...na ciência, o objeto de investigação não é a Natureza em si mesma, mas a Natureza submetida à interrogação dos homens". Não se trata aqui, de uma interrogação unilateral, técnica, menor, mais de uma interrogação abrangente, sequiosa de entendimento, uma tarefa intelectual.
Outrora, os intelectuais eram homens que, na Universidade ou fora dela, acreditavam nas idéias que formulavam e formulavam idéias como uma resposta às suas convicções. Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se com o seu tempo e não devem traí-lo. Foi desse modo que o filósofo francês criticava a indiferença de Balzac face às jornadas de 48 e a incompreensão de Flaubert diante da Comuna. (L. Bassets, 1992, p.15).
Que fazer, quando, na própria Casa fundada para o culto da Verdade, a organização do cotidiano convida a deixar de lado o que é importante e fundamental?
Num discurso endereçado à agremiação norte-americana de economistas, um economista filósofo, Kenneth Bouding (1969), ante os descaminhos já clamorosos de sua profissão, reclamava a necessidade de heroísmo, para pôr fim ao conformismo, fugir aos raciocínios técnicos, recusar a pesquisa espasmódica, abandonar a vida fácil e, afinal, enfrentar o entendimento do Mundo.
O empenho com que nos convocam para tratar, seja como for, as questões do meio ambiente, sem que um espaço maior seja reservado a uma reflexão mais profunda sobre as relações, por intermédio da técnica, seus vetores e atores, entre a comunidade humana assim mediatizada e a natureza, assim dominada, é típico de uma época e tanto ilustra os riscos que corremos, como a necessidade de, em todas as áreas do saber, agir com heroísmo, se desejamos poder continuar a perseguir a verdade.

Milton Santos, in 1992: A redescoberta da natureza. Aula inaugural da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 10 de março de 1992.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Ecolítica polinomia

Precisamos voltar a ter coragem e segurança para fazer opções político-ideológicas ao invés de apenas fazer opções econômicas. Precisamos voltar a entender porque isso é importante. A saúde, na verdade a exemplo de quase todas as coisas, navega nos rumos apontados pela redução dos custos / aumento dos lucros. Nos discursos políticos não se fala mais em cuidar da saúde, mas em reduzir os custos gerados pela doença. Fazemos política para o bolso de alguns ou para as pessoas? Falar sobre a saúde das pessoas diretamente deixou de ter importância? Não convence se não se falar em montantes de dinheiro economizado, multiplicado? Sim, não convence alguns, mas esses alguns não são os que sofrem com a saúde pública. É fundamental deixar de cair na falácia de que a relação econômica que existe como fundamento para a criação de políticas de saúde pública, que é um aspecto importante e necessário da decisão, seja a própria decisão.