sábado, 30 de outubro de 2010

Fernando Pessoa

"Eu tenho uma espécie de dever, de dever de sonhar, de sonhar sempre, pois sendo mais do que um espectador de mim mesmo, eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso. E assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho entre luzes brandas e músicas invisíveis."

sábado, 9 de outubro de 2010

Memórias do ensaio para a humanidade III: Primeira Guerra

" Ah, as pálidas cara de nabo, as mãos crispadas, a valentia lamentável desses pobres coitados, que, apesar de tudo, avançam e atacam; esses pobres-diabos corajosos, tão atemorizados que não ousam gritar e que, com o peito, o ventre, os braços e as pernas dilacerados, soluçam baixinho pelas suas mães e calam-se assim que se olha para eles!
Seus rostos mortos, púberes, afilados têm a terrível inexpressividade das crianças mortas.
Sente-se um nó na garganta ao ver como saltam, correm e caem. Tenho vontade de bater neles porque são todos bobos, mas, ao mesmo tempo, gostaria de pegá-los no colo e levá-los para longe daqui: este não é o seu lugar. Vestem suas túnicas, calças e botas cinzentas, mas, para a maioria, a farda é larga demais, flutuando-lhes ao redor dos membros; os ombros demasiados estreitos, os corpos demasiado pequenos. Não havia uniforme feito para estas medidas de criança.
Para cada veterano, morrem de cinco a dez recrutas. Um ataque inesperado de gás ceifa a vida de muitos. Nem chegaram a aprender o que fazer. Achamos um abrigo cheio de homens com os rostos azulados e lábios negros. Numa trincheira, tiraram cedo demais as máscaras; não sabiam que o gás se mantém mais tempo ao chão; vendo os outros lá em cima sem as máscaras, arrancaram as suas e engoliram gás suficiente para queimar os pulmões. Seu estado é desesperador, engasgam com hemorragias e têm crises de asfixia, até morrer."

(...)

" Nossos rostos estão cobertos por uma crosta, nosso pensamento, aniquilado; estamos exaustos. Quando vier o ataque, será preciso despertar alguns a murro para que avancem com os outros; nossos olhos estão inchados, as mãos rasgadas, os joelhos sangram, os cotovelos estão esfolados.
Quanto tempo passou? Semanas? Meses? Anos? Dias, são apenas dias. Vemos o tempo ao nosso lado desaparecer no semblante pálido dos que morrem, entupimo-nos de alimentos, corremos, atiramos granadas, disparamos tiros, matamos, deitamo-nos nos abrigos, estamos exaustos e embrutecidos. Só uma coisa nos conforta: ver que há outros mais fracos, mais abatidos, mais desamparados, que nos olham com os olhos esbugalhados, como se fôssemos deuses que, muitas vezes, conseguiram escapar à morte.
Nas poucas horas de descanso, damos aulas aos recrutas.
(...) mostramos-lhes todas as formas de se salvarem da morte."

(...)

" Vemos homens ainda vivos que não têm mais a cabeça; vemos soldados que tiveram os dois pés arrancados andarem, tropeçando nos cotos lascados até o próximo buraco; um cabo arrasta-se dois quilômetros de quatro, levando atrás de si os joelhos esmagados; Outro chega até o posto de primeiro socorros e, por sobre as mãos que os seguram, saltam os seus intestinos. Vemos homens sem boca, sem queixo, sem rosto; encontramos um homem que, durante duas horas, aperta com os dentes a artéria de um braço, para não ficar exangue. O sol se põe, vem a noite, as granadas assobiam, a vida chega ao fim."

(...)

" Assim, no momento, temos as duas coisas de que o soldado precisa para ser feliz: boa comida e repouso. Pensando bem, é pouco. Há alguns anos, teríamos desprezado isso terrivelmente. Agora, estamos bastante satisfeitos. É tudo uma questão de hábito, até mesmo o front.
Esse hábito é a razão pela qual parecemos esquecer tudo tão depressa. Ontem, ainda estávamos debaixo do fogo; hoje, dizemos bobagens, deixamos correr a vida; amanhã, voltaremos para as trincheiras. Na realidade, nada esquecemos.
Enquanto estivermos no campo de batalha, os dias na frente, que já passaram, caem dentro de nós como pedras: são pesados demais para podermos refletir tão depressa sobre eles. Se o fizéssemos, eles nos abateriam mais tarde, pois já notei que se consegue suportar o horror enquanto se dissimula, mas ele mata quando nele se pensa.
Exatamente como nos transformamos em animais quando vamos para a frente, porque é a única maneira de nos salvarmos, tornamo-nos humoristas e vagabundos quando estamos descansando. Não conseguimos agir de outra maneira: na verdade, é qualquer coisa superior a nós próprios. Queremos viver a qualquer preço; por isso, não podemos arcar com o peso dos sentimentos, que podem ser muito decorativos em tempos de paz, mas, aqui, estariam totalmente deslocados."

Erich Maria Remarque - Nada de novo no front

sábado, 2 de outubro de 2010

Memórias do ensaio para a humanidade II: Primeira Guerra

" Hoje, passaríamos pela paisagem de nossa juventude apenas como viajantes. Os fatos nos consumiram; como os comerciantes, sabemos distinguir as diferenças e, como os carniceiros, sabemos reconhecer as necessidades. Já não somos despreocupados; vivemos numa terrível indiferença. Se estivéssemos lá, será que viveríamos? Desamparados como crianças e experientes como velhos, somos primitivos, tristes e superficiais... Acho que estamos perdidos."

(...)

" Os dias se sucedem, e cada hora é ao mesmo tempo incompreensível e natural. Os ataques seguem-se aos contra-ataques, e, lentamente, nos espaços livres das trincheiras, os mortos se empilham. Geralmente, conseguimos trazer de volta alguns feridos; no entanto, alguns ficam estendidos por muito tempo, e nós os ouvimos morrer.
Procuramos um deles em vão durante dois dias."

(...)

" Os dias são quentes, e os mortos jazem desenterrados. Não podemos ir buscar todos, não saberíamos para onde ir com eles.
Não precisamos, porém, nos preocupar: são enterrados pelas granadas. Alguns tem as barrigas inchadas como balões, assobiam, arrotam e mexem-se. São os gases que se agitam neles.
O céu está azul e sem nuvens. As noites são sufocantes, e calor sobe da terra. Quando o vento sopra na nossa direção, traz o vapor de sangue, que é pesado e de um doce repugnante; esta exalação mortal das trincheiras parece uma mistura de clorofórmio e de podridão, que nos causa mal-estar e vômitos.

(...)

" Gostamos dos aviões de combate, mas detestamos como a peste os de observação, porque atraem para nós o fogo da artilharia. Poucos minutos depois de surgirem, explode um dilúvio de granadas. Com isto, perdemos onze homens num só dia, inclusive cinco enfermeiros. Dois ficaram tão esmagados, que Tjaden afirmou poder raspá-los da parede da trincheira com uma colher e enterrá-los nas marmitas. Um outro teve o abdome arrancado juntamente com as pernas. Está morto, com o peito encostado na trincheira, seu rosto está verde como um limão, e no meio da barba cerrada ainda arde um cigarro, que continua queimando até apagar-se nos seus lábios.
Por ora, colocamos os mortos numa grande cratera. Até o momento, já empilhamos três camadas."


Erich Maria Remarque - Nada de novo no front

Memórias do ensaio para a humanidade I: Primeira Guerra

" Albert exprime muito bem o que pensamos:
- A guerra arrumou-nos pra tudo.
Ele tem razão. Não somos mais a juventude. Não queremos mais conqusitar o mundo. Somos fugitivos. Fugimos de nós mesmos e de nossas vidas. Tínhamos dezoito anos e estávamos começando a amar a vida e o mundo e fomos obrigados a atirar neles e destruí-los. A primeira bomba, a primeira granada, explodiu em nossos corações. Estamos isolados dos que trabalham, da atividade, da ambição, do progresso. Não acreditamos mais nessas coisas; só acreditamos na guerra."

(...)

" A frente é uma jaula, dentro da qual a gente tem de esperar nervosamente os acontecimentos. Estamos deitados sob a rede formada pelos arcos das granadas, e vivemos na tensão da incerteza. Acima de nós, paira a fatalidade. Quando vem um tiro, posso apenas esquivar-me e mais nada; não posso adivinhar exatamente onde vai cair, nem influir sua trajetória.
É este acaso que nos torna indiferentes. Há alguns meses, eu estava sentado num abrigo jogando cartas; muito tempo depois, levantei-me e fui visitar uns amigos que estavam em outro abrigo. Quando voltei, já não existia o primeiro: fora completamente destruído por uma granada. Voltei ao segundo abrigo e cheguei no exato momento de ajudar a desobstruí-lo, pois, neste ínterim, também havia sido soterrado.
No abrigo à prova de bombas, depois de dez horas de bombardeio posso ser estraçalhado e posso não sofrer um único arranhão; só o acaso decide se sou atingido ou fico vivo. Cada soldado fica vivo apenas por mil acasos. Mas todo soldado acredita e confia no acaso."

(...)

" Os ratos aqui são especialmente repugnantes, pelo seu grande tamanho. É o tipo que se chama "ratazana de cadáver". Têm caras horríveis, malévolas e peladas. Só de ver seus rabos compridos e desnudos nos dá vontade de vomitar.
Parecem muito esfomeados. Já roeram o pão de quase todos. Kropp mete o dele embaixo da cabeça, bem embrulhado num pedaço de lona, mas, mesmo assim, não consegue dormir, porque eles correm por sobre o seu rosto para alcançar o pão. Detering quis ser mais esperto: amarrou um arame fino no teto e pendurou nele o seu pedaço de pão. Durante a noite, quando acendeu a lanterna, viu o arame oscilar de um lado para o outro. Montada no pão, balançava-se uma gorda ratazana."


Erich Maria Remarque - Nada de novo no front