" Ah, as pálidas cara de nabo, as mãos crispadas, a valentia lamentável desses pobres coitados, que, apesar de tudo, avançam e atacam; esses pobres-diabos corajosos, tão atemorizados que não ousam gritar e que, com o peito, o ventre, os braços e as pernas dilacerados, soluçam baixinho pelas suas mães e calam-se assim que se olha para eles!
Seus rostos mortos, púberes, afilados têm a terrível inexpressividade das crianças mortas.
Sente-se um nó na garganta ao ver como saltam, correm e caem. Tenho vontade de bater neles porque são todos bobos, mas, ao mesmo tempo, gostaria de pegá-los no colo e levá-los para longe daqui: este não é o seu lugar. Vestem suas túnicas, calças e botas cinzentas, mas, para a maioria, a farda é larga demais, flutuando-lhes ao redor dos membros; os ombros demasiados estreitos, os corpos demasiado pequenos. Não havia uniforme feito para estas medidas de criança.
Para cada veterano, morrem de cinco a dez recrutas. Um ataque inesperado de gás ceifa a vida de muitos. Nem chegaram a aprender o que fazer. Achamos um abrigo cheio de homens com os rostos azulados e lábios negros. Numa trincheira, tiraram cedo demais as máscaras; não sabiam que o gás se mantém mais tempo ao chão; vendo os outros lá em cima sem as máscaras, arrancaram as suas e engoliram gás suficiente para queimar os pulmões. Seu estado é desesperador, engasgam com hemorragias e têm crises de asfixia, até morrer."
(...)
" Nossos rostos estão cobertos por uma crosta, nosso pensamento, aniquilado; estamos exaustos. Quando vier o ataque, será preciso despertar alguns a murro para que avancem com os outros; nossos olhos estão inchados, as mãos rasgadas, os joelhos sangram, os cotovelos estão esfolados.
Quanto tempo passou? Semanas? Meses? Anos? Dias, são apenas dias. Vemos o tempo ao nosso lado desaparecer no semblante pálido dos que morrem, entupimo-nos de alimentos, corremos, atiramos granadas, disparamos tiros, matamos, deitamo-nos nos abrigos, estamos exaustos e embrutecidos. Só uma coisa nos conforta: ver que há outros mais fracos, mais abatidos, mais desamparados, que nos olham com os olhos esbugalhados, como se fôssemos deuses que, muitas vezes, conseguiram escapar à morte.
Nas poucas horas de descanso, damos aulas aos recrutas.
(...) mostramos-lhes todas as formas de se salvarem da morte."
(...)
" Vemos homens ainda vivos que não têm mais a cabeça; vemos soldados que tiveram os dois pés arrancados andarem, tropeçando nos cotos lascados até o próximo buraco; um cabo arrasta-se dois quilômetros de quatro, levando atrás de si os joelhos esmagados; Outro chega até o posto de primeiro socorros e, por sobre as mãos que os seguram, saltam os seus intestinos. Vemos homens sem boca, sem queixo, sem rosto; encontramos um homem que, durante duas horas, aperta com os dentes a artéria de um braço, para não ficar exangue. O sol se põe, vem a noite, as granadas assobiam, a vida chega ao fim."
(...)
" Assim, no momento, temos as duas coisas de que o soldado precisa para ser feliz: boa comida e repouso. Pensando bem, é pouco. Há alguns anos, teríamos desprezado isso terrivelmente. Agora, estamos bastante satisfeitos. É tudo uma questão de hábito, até mesmo o front.
Esse hábito é a razão pela qual parecemos esquecer tudo tão depressa. Ontem, ainda estávamos debaixo do fogo; hoje, dizemos bobagens, deixamos correr a vida; amanhã, voltaremos para as trincheiras. Na realidade, nada esquecemos.
Enquanto estivermos no campo de batalha, os dias na frente, que já passaram, caem dentro de nós como pedras: são pesados demais para podermos refletir tão depressa sobre eles. Se o fizéssemos, eles nos abateriam mais tarde, pois já notei que se consegue suportar o horror enquanto se dissimula, mas ele mata quando nele se pensa.
Exatamente como nos transformamos em animais quando vamos para a frente, porque é a única maneira de nos salvarmos, tornamo-nos humoristas e vagabundos quando estamos descansando. Não conseguimos agir de outra maneira: na verdade, é qualquer coisa superior a nós próprios. Queremos viver a qualquer preço; por isso, não podemos arcar com o peso dos sentimentos, que podem ser muito decorativos em tempos de paz, mas, aqui, estariam totalmente deslocados."
Erich Maria Remarque - Nada de novo no front
Um comentário:
"O senhor mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam.
Verdade maior, que a vida me ensinou"
Guimarães Rosa
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