sábado, 5 de fevereiro de 2011

Memórias do ensaio para a humanidade IV: Primeira Guerra

" Minha mãe, de repente, segura minha mão com ímpeto e pergunta, hesitante:
- É dura a vida nas trincheiras, Paul?
- Mãe, que devo eu responder a isto? Você não entenderia e nunca poderia imaginá-lo. E não deveria imaginá-lo. Foi duro?, você pergunta, você, mãezinha - sacudo a cabeça e digo: - Não, mamãe, nem tanto. Há muitos companheiros e estamos sempre juntos, o que torna as coisas mais fáceis.
- É, mas há pouco tempo Heinrich Bredemeyer esteve aqui e contou que agora é terrível lá na frente, com gás e todo o resto.
É minha mãe quem diz isto: "Com gás e todo o resto"? Ela não sabe o que diz, apenas sente medo por mim. Devo contar-lhe que, uma vez, descobrimos três trincheiras inimigas, onde todos estavam solidificados nas suas posições, como que abatidos por um raio? Nos parapeitos, nos abrigos onde por acaso foram surpreendidos, ficaram de pé ou deitados, os homens mortos com os rostos azuis.
- Ah, mamãe, o que se diz por aí são só boatos... - respondo."

(...)

" Ja sei que tudo aquilo que agora, enquanto ainda estamos na guerra, afunda em nós como uma pedra despertará novamente depois dela, e, a partir de então, começará a grande luta. De vida ou de morte."

(...)

" O caneco está pela metade, mas ainda há uns bons goles gelados para saborear, e, além disso, posso pedir um segundo e um terceiro, se quiser. Não há chamada nem bombardeio, os filhos do dono brincam na pista de boliche, e o cachorro vem encostar a cabeça no meu joelho. O céu está azul; por entre o verde dos castanheiros, ergue-se a torre da igreja de Santa Margarida. Como isto é bom, como gosto de tudo. Mas não consigo me entender com as pessoas. A única que nada pergunta é minha mãe. Mas, com meu pai, já é diferente. Gostaria que lhe falasse sobre o front, tem uma curiosidade que acho ao mesmo tempo tola e comovente; perdi a intimidade que tinha com ele. Compreendo que não saiba que essas coisas não podem ser contadas, apesar de ter vontade de agradar-lhe; mas é muito perigoso para mim transformar os acontecimentos em palavras: tenho medo de que eles então se agigantem de tal modo que eu não consiga mais dominá-los. Onde estaríamos, se tudo que nos acontece no campo de batalha fosse muito claro para nós?"

(...)

" Infelizmente aceitei o charuto e, por isto, sou obrigado a ficar. Todos derramam amabilidades; nada posso fazer. Mesmo assim, fico irritado. Para demonstrar um mínimo de reconhecimento, entorno o copo de cerveja de um só trago. Imediatamente, pedem um segundo copo para mim; as pessoas sabem o quanto devem a um soldado. Discutem sobre os territórios que devemos anexar. O diretor com o relógio de corrente dourada quer pelo menos toda a Bélgica, as regiões carboníferas da França e grandes áreas da Rússia."

(...)

" As lombadas dos livros alinham-se uma ao lado da outra. Ainda os conheço e me lembro de como os arrumei. Suplico-lhes com os olhos. Falem comigo... recebam-me... receba-me, vida da minha juventude, você que é despreocupada e bela... receba-me novamente...
Espero... espero.
As imagens flutuam pelo meu pensamento, mas não se fixam, são apenas sombras e lembranças.
-Nada - nada...
Minha inquietação aumenta..."

(...)

" Prefiro ficar sozinho; assim, ninguém me irrita, porque todos voltam sempre ao mesmo tema, como tudo vai mal, como tudo vai bem; um acha isto, o outro, aquilo... acabam sempre falando do que lhes interessa pessoalmente. Antigamente, devo ter sido assim também, mas hoje não me sinto mais ligado a isso.
Falam demais. Têm preocupações, objetivos e desejos que eu não entendo. Às vezes, sento-me com um deles num pequeno jardim do café e tento explicar-lhe que o importante, afinal, é ficar sentado assim, tranquilamente, como agora. Compreendem, é claro, e o admitem; chegam até a concordar, mas só com palavras, isto é... sentem-no, mas só pela metade, o resto de seu ser está ocupado com outros assuntos; estão de tal forma divididos dentro de si próprios que nenhum deles sente-o com toda a sua alma; até mesmo eu não consigo expressar claramente o que penso.
Quando os vejo assim, nos seus quartos, nos seus escritórios, entregues aos seus afazeres, sinto-me irresistivelmente atraído, queria ficar aqui também e esquecer a guerra; mas, ao mesmo tempo, isso também me repugna, tudo é tão mesquinho, como pode encher uma vida?... é preciso acabar com isso. Como podem ser assim, enquanto lá fora os estilhaços zunem sobre as trincheiras e os foguetes luminosos sobem, os feridos são arrastados em lonas para a retaguarda e os companheiros abaixam-se nas trincheiras? "

(...)

" Que é uma licença? Uma trégua, que depois torna tudo mais doloroso. Já se insinua uma despedida. Minha mãe me olha, em silêncio; sei que está contando os dias; todas as manhãs, ela fica triste: um dia a menos, pensa. Guardou minha mochila, para que não lhe lembre a fatalidade.
As horas passam depressa, quando se fica ruminando os pensamentos. Procuro dominar-me e acompanho minha irmã ao açougue, para comprar uma libra de ossos. Isto é um grande luxo, e já de manhã cedo faz-se uma fila para esperá-los. Muitos chegam a desmaiar.
Não temos sorte> depois de termos esperado, revezando-nos, durante três horas, a fila se dispersa. Os ossos acabaram."

(...)

" Ah, mamãe, minha mãezinha! Para você, sou uma criança ainda... por que não posso deitar a cabeça no seu colo e chorar? Por que sempre tenho de ser eu o mais forte, o mais controlado? Também gostaria de chorar e de ser consolado; na realidade, sou pouco mais do que uma criança; no armário, ainda estão penduradas minhas calças curtas de menino; foi há tão pouco tempo, por que já passou?
- Lá onde estamos agora não há mulheres, mãe - digo, com a tranquilidade que me é possível.
- E tome muito cuidade lá na frente, Paul.
Ah, mãe, mãezinha! Por que não a pego nos braços, e morremos juntos? Somos uns pobres-diabos!
- Sim, mãe, terei cuidado.
- Rezarei por vocês todos os dias, Paul.
Ah, mãe, mãezinha! Vamos levantar e percorrer esses anos passados, até que toda essa miséria não pese mais sobre nós. Voltemos atrás, àquele tempo em que só havia nós dois!
- Talvez você consiga uma posição que não seja tão perigosa.
- Sim, mamãe, posso ser mandado para serviço de cozinha, não é difícil consegui-lo.
- Aceite, meu filho, e se os outros disserem alguma coisa...
- Isto não me preocupa.
Ela suspira. Seu rosto é uma mancha branca no escuro."

(...)

" Coitada, está lá deitada na sua cama, ela, que me ama mais do que ninguém no mundo. Quando me preparo para sair do quarto, ela diz, rapidamente:
- Arranjei mais dois pares de ceroulas para você, de boa lã. Elas o aquecerão. Não se esqueça de colocá-las na mochila!
Ah, mamãe, mãezinha, como é possível que seja obrigado a deixá-la? Quem mais tem direito sobre mim, senão você? Ainda estou sentado aqui, e lá está deitada você, e temos tanta coisa a dizer-nos, que jamais conseguiremos fazê-lo.
- Boa noite, mãe.
- Boa-noite, meu filho.
O quarto está escuro. Ouço a respiração de minha mãe e o tique-taque do relógio. O ventro sopra e os castanheiros murmuram.
Na entrada, tropeço na mochila que já está lá, pronta, porque terei de partir amanhã bem cedo.
Mordo o travesseiro, agarro convulsivamente com meus punhos as barras de ferro da cama. Nunca deveria ter vindo.
Lá fora, muitas vezes fiquei indiferente e sem esperança; agora, nunca mais conseguirei sê-lo. Fui soldado e agora nada mais sou do que sofrimento... por mim, por minha mãe, por todos os desconsolados e condenados. Nunca deveria ter aceitado a licença."

Erich Maria Remarque - Nada de novo no front

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