quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Memórias do ensaio para a humanidade VI: Primeira Guerra

" Mas logo me invade novamente uma nova onda de vergonha e de arrependimento, que vem confundir-se com desejo de segurança. Levanto-me um pouco, para observar o que se passa. Meus olhos ardem, de tal modo tenho o olhar fixo na escuridão. Um foguete luminoso sobe ao espaço; encolho-me de novo.
Debato-me numa luta furiosa e irracional, quero sair da cratera e, no entanto, deslizo novamente para dentro e digo: "Você tem de fazê-lo, é pelos seus companheiros e não por uma ordem idiota qualquer"; e, logo depois, acrescento: "Que me importa tudo isto? A vida é uma só...". Eis o resultado da licença, penso amargamente, como desculpa. (...)
(...) Agora, ouço também vozes abafadas. A julgar pelo tom de uma delas, parece ser Kat quem fala.
Um calor bom me invade bruscamente. Estas vozes, estas poucas palavras suaves, estes passos na trincheira atrás de mim arrancam-me de um só golpe da terrível solidão do medo da morte a que quase me entregara.
Estas vozes são mais do que a minha vida, são mais que o amor materno, mais que o medo, são a coisa mais forte e protetora que há no mundo: são as vozes dos meus companheiros.
Não sou mais uma trêmula centelha de vida, sozinho na escuridão - pertenço a eles e eles a mim, compartilhamos o mesmo medo e a mesma vida, somos unidos como amantes, de uma maneira simples e profunda. Gostaria de mergulhar meu rosto nelas, nestas poucas palavras que me salvaram e que me sustentarão."

(...)

"Rapidamente, tiro meu pequeno punhal da bainha, seguro-o com firmeza e escondo-o na lama, sem soltá-lo da mão. Se alguém saltar aqui dentro, será imediatamente esfaqueado (isto fica martelando na minha cabeça) - será bem na garganta para que não possa gritar. Não há outro recurso: estará tão assustado quanto eu e cheio de medo, e atirar-nos-emos um ao outro - portanto, tenho que ser o primeiro."

(...)

" (...) Justamente quando procuro levantar-me um pouco, rola por cima de mim um corpo, que cai estendido.
Não penso em nada, não tomo decisões; atiro-me furiosamente sobre ele e sinto apenas que o corpo subitamente estremece, torna-se flácido, dobra-se sobre si próprio e cai.
Quando recupero a consciência, minha mão está pegajosa e molhada.
O homem agoniza. Parece-me que grita, que cada respiração é como um bramido, mas são apenas minhas veias que latejam assim. Gostaria de tapar-lhe a boca, entupi-la de terra, apunhalá-lo novamente, para que se cale, ele precisa ficar quieto, está me denunciando; por fim consigo controlar-me, mas fico tão fraco que não consigo mais erguer a mão contra ele.
Então, arrasto-me até o outro extremo da cratera, onde me mantenho com os olhos fixos nele, apertando o punhal, pronto a precipitar-me sobre ele ao menor movimento; mas não fará mais nada, sua respiração já é um estertor. (...)
(...) O homem não está morto: está morrendo, mas ainda vive. Rastejando, aproximo-me dele; paro; apóio-me nas mãos e torno a rastejar mais um pouco; espero, torno a avançar; é uma dolorosa jornada de três metros, uma longa e terrível jornada. Finalmente, estou a seu lado.
Agora, abre os olhos. Deve ter me ouvido, e me olha com uma expressão de absoluto pavor. O corpo está imóvel, mas, nos olhos, a expressão de fuga é tão intensa que, por um instante, chego a pensar que teriam força para arrastar o corpo com eles para centenas de quilômetros de distância, com um único impulso.
O corpo está imóvel, sua imobilidade é total: não se ouve um só ruído, cessou o estertor, mas os olhos gritam, urram: neles, juntou-se toda a vida que ainda resta, num esforço sobre-humano para escapar, um pavor atroz diante da morte, diante de mim."

(...)

" Que horas atrozes! O estertor recomeça: como o ser humano morre lentamente. De uma coisa estou certo: ele não pode ser salvo. É bem verdade que tentei convencer-me do contrário, mas, ao meio-dia, esta esperança foi destruída, desfez-se diante dos seus gemidos. Se ao menos não tivesse perdido meu revólver, dar-lhe-ia um tiro. Apunhalá-lo é que não consigo.
À tarde, atinjo os limites dos pensamentos. A fome me devora: é tanta, que sinto vontade de chorar, não consigo lutar contra isto. Por várias vezes, vou buscar mais água para o moribundo, e eu mesmo bebo também.
Este é o primeiro homem que matei com minhas próprias mãos e cuja morte, posso constatá-lo sem sombra de dúvida, foi obra minha. Kat, Kropp e Müller também já viram homens a quem mataram: isto acontece a muita gente, principalmente em combate corpo a corpo...
Mas cada respiração arquejante corta meu coração. Este ser que agoniza tem o tempo do seu lado, possui um punhal invisível, com que me fere: o tempo e meus pensamentos.
Quanto não daria eu para que se salvasse! É duro ficar deitado aqui, sendo obrigado a vê-lo e ouvi-lo.
Às três horas da tarde, ele morre.
Respiro aliviado, mas só por pouco tempo. Em breve, parece-me mais doloroso suportar o silêncio do que os gemidos."

(...)

"O silêncio prolonga-se. Falo, preciso falar. Assim, dirijo-me a ele e digo-lhe:
- Companheiro, não queria matá-lo. Se saltasse novamente aqui dentro, não o faria, se você também fosse razoável. Mas, antes, você era apenas um pensamento, uma dessas abstrações que povoam meu cerébro e que exigem uma decisão... Foi essa abstração que apunhalei. Mas agora, pela primeira vez, vejo que é um ser humano como eu. Pensei nas suas granadas, na sua baioneta e no seu fuzil. Agora, vejo sua mulher, seu rosto e o que temos em comum. Pordoe-me, companheiro. Só vemos as coisas tarde demais. Por que não nos repetem sempre que vocês são também uns pobres-diabos como nós, que suas mães se inquietam como as nossas e que temos o mesmo medo da morte e morremos do mesmo modo, sentindo a mesma dor?...
"Perdoe-me, companheiro, como é que você pôde ser meu inimigo. Se jogássemos fora estas armas e estas fardas, poderia ser meu irmão, como Kat e Albert. Tire vinte anos de minha vida, companheiro, e levante-se... tire mais, porque não sei o que farei deles agora.""

(...)

" Então, aos poucos, reparamos que começa um bombardeio. Os balões cativos descobrem a fumaça de nossa chaminé, e os projéteis chovem sobre a casa. São as malditas granadas de artilharia ligeira, que fazem um orifício pequeno, lançando muito longe a carga. Aproximam-se com seu assobio característico, mas não podemos abandonar a comida. Alguns estilhaços entram pela janela da cozinha. O assado já está pronto. Mas agora torna-se cada vez mais difícil fritar os bolinhos. Os projéteis caem tão perto, que a intervalos cada vez menores vão bater na parede e penetram pela janela. Cada vez que ouço uma granada aproximar-se abaixo-me com a frigideira e os bolinhos. Logo depois, levanto-me e prossigo o meu trabalho.
Os saxões param de tocar: um estilhaço atingiu o piano. (...)
(...) Frito os últimos quatro bolinhos e, enquanto o faço, sou obrigado a abaixar-me duas vezes até o chão... mas, afinal, são mais quatro bolinhos, e este é meu prato predileto."

(...)

" Sou jovem, tenho vinte anos, mas da vida conheço apenas o desespero, o medo, a morte e a mais insana superficialidade que se estende sobre um abismo de sofrimento. Vejo como os povos são insuflados uns contra os outros e como se matam em silêncio, ignorantes, tolos, submissos e inocentes. Vejo que os cérebros mais inteligentes do mundo inventam armas e palavras para que tudo isto se faça com mais requintes e maior duração. E, como eu, todos os homens de minha idade, tanto deste quanto do outro lado, no mundo inteiro, vêem isto; toda a minha geração sofre comigo. Que fariam nossos pais se um dia nós nos levantássemos e nos apresentássemos a eles, para exigir que nos prestassem contas? Que esperam de nós, se algum dia a guerra terminar? Durante todos esses anos, nossa única preocupação foi matar. Nossa primeira profissão na vida. Nosso conhecimento da vida limita-se à morte. Que se pode fazer, depois disto? Que será de nós?"

(...)

"Fora e dentro de nós, há campos cheios de crateras."

(...)

" Nossa comida é tão ruim e adulterada com tantos sucedâneos que ficamos doentes. Os donos de fábricas na Alemanha enriquecem, enquanto a disenteria nos corrói os intestinos."

(...)

" Os tanques, antes objeto de troça, transformaram-se em armar terríveis. Desenvolvem-se em longas filas blindadas e, aos nossos olhos, personificam, mais do que qualquer coisa, o horror da guerra.
Não vemos os canhões que despejam sobre nós o seu fogo; as linhas de ataque da infantaria inimiga são compostas de seres humanos como nós; estes tanques são máquinas; suas esteiras giram sem parar, como a guerra; são portadores da destruição, quando descem insensivelmente para as crateras e sobem novamente sem parar, como uma frota de encouraçãdos, rugindo, soltando fumaça, indestrutíveis bestas de aço, esmagando mortos e feridos. Encolhemo-nos diante deles, dentro de nossa pele fina, diante de seu colossal poder, nossos braços são canudos, e nossas granadas de mão, palitos de fósforos."

(...)

" Bertinck levou um tiro no peito. Momentos depois um estilhaço esmaga-lhe o queixo. O mesmo estilhaço ainda tem força de abrir o quadril de Leer. Leer geme e apóia-se nos braços, perde sangue rapidamente; ninguém pode ajudá-lo. Como um saco que se esvazia, dobra-se sobre si próprio depois de alguns minutos. De que lhe serviu ser tão bom aluno de matemática na escola?"

(...)

" Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranquilo em toda a linha de frente, que o comunicado limitou-se a uma frase: "Nada de novo no front".
Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena, que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim."

Erich Maria Remarque - Nada de novo no front

E tudo pôde acontecer novamente anos depois, e ainda hoje continuar a acontecer:

"A morte do povo foi como sempre tem sido: como se não morresse ninguém, nada, como se fossem pedras que caem sobre a terra, ou água sobre água."
Pablo Neruda.

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